Certa vez, um prefeito disse que se uma casa é importante porque é uma casa privada, uma cidade deve merecer a mesma consideração, porque é a nossa “casa pública”.
A médica espanhola Sonia G., de 35 anos, decidiu que Londres não será mais sua morada em ambos os aspectos.
Após cinco anos na capital inglesa, ela voltou a morar em Madri, na Espanha, cidade administrada no passado pelo prefeito que fez a reflexão acima, Enrique Tierno Galván.
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E ela não é a única a tomar essa decisão: o Reino Unido sofreu no ano passado a maior queda populacional desde a Segunda Guerra Mundial. Um declínio impulsionado por um êxodo em massa de migrantes, com epicentro em Londres.
Uma fuga que se manifesta com força na capital inglesa: 700 mil estrangeiros deixaram a cidade, segundo estimativas feitas pelos economistas Jonathan Portes e Michael O’Connor, que cruzaram dados oficiais sobre emprego e população.
“É um êxodo sem precedentes”, afirmam os especialistas.
A pandemia, o catalisador
O caso da médica espanhola ilustra bem os dados e as conclusões desse estudo.
“No meu caso, a pandemia foi a gota d’água”, diz Sonia à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC.
“Não é pelo volume de trabalho devido ao coronavírus, que é o mesmo no meu país, mas pelo desgaste de não poder visitar minha família, principalmente minha avó, que tenho medo de não ver mais. Estou há quase um ano sem poder vê-los, e as dificuldades para entrar e sair do Reino Unido são cada vez maiores. Me sinto isolada, e a pandemia ainda vai durar muitos meses.”
A pandemia como catalisador é exatamente a principal hipótese que Portes e O’Connor usam para explicar a fuga de cidadãos nascidos fora do Reino Unido.
“O Reino Unido se saiu relativamente mal em termos econômicos e sanitários durante a primeira onda da pandemia”, analisam.
“Para muitos imigrantes, especialmente europeus e aqueles que chegaram recentemente ou têm família em seu país, a escolha implicaria em ficar aqui (no Reino Unido durante a pandemia) sem emprego, com menos dinheiro ou até mesmo nada, e pagando por moradia com um aluguel relativamente caro.”
Neste contexto, “a escolha não foi difícil para eles”, avaliam: “Ir para casa com a família, com menos despesas e menos probabilidade de contrair o coronavírus”.
Alberto Domínguez se identifica com o diagnóstico feito pelos especialistas.
O tatuador e modelo espanhol estava em Londres havia quase seis anos — e há duas semanas fez as malas e voltou para sua terra natal.
“Amo Londres: suas opções de lazer, seu multiculturalismo, sua eficiência, as oportunidades que tinha antes …”, diz ele à BBC News Mundo.
“Mas é extremamente difícil viver nesta cidade neste momento devido à pandemia, com um custo de vida tão alto e nenhuma renda.”
“É uma pena que você ainda não consiga fazer tatuagem online”, brinca ele com ar de resignação.
Imigrantes, os mais afetados
Dinheiro, moradia e trabalho. Esses três pilares para a imigração, citados pela pesquisa do ESCOE, começaram a cambalear com a pandemia.
Antes da chegada do novo coronavírus, a taxa de desemprego do Reino Unido estava em seu nível mais baixo desde 1975 (3,8%), mas agora se encontra no ponto mais alto dos últimos quatro anos.
Mais de 1,7 milhão de pessoas não estão empregadas, e a taxa de desemprego pode variar entre 7% e 10% até meados do ano, segundo projeções do Banco da Inglaterra.
E as estatísticas não captam a verdadeira dimensão do problema, de acordo com os pesquisadores do ESCOE, que perceberam que grande parte das sanções econômicas impostas pela crise de saúde está recaindo sobre os migrantes.
“Parece que grande parte do ônus da perda de postos de trabalho durante a pandemia recaiu sobre os trabalhadores estrangeiros e se manifestou em uma migração de retorno, ainda mais que nos próprios números do desemprego”, considera Portes.
E tem muito a ver com o tipo de cargo que esses cidadãos ocupam.
“Os imigrantes têm uma probabilidade desproporcional de acabarem empregados no setor de hospitalidade e em outros serviços relacionados que requerem contato pessoal, tornando mais plausível que sejam demitidos ou percam grande parte de sua renda” devido à pandemia.
“Esse é claramente o meu caso”, explica Angela, esteticista italiana que voltou no fim do ano passado para Carpinone, uma pequena cidade italiana entre Roma e Nápoles.
“As condições do meu contrato mudaram com a pandemia, passei a ter menos horas e menos renda. E a ajuda do governo não compensou a diferença. Não valia mais a pena ficar mais tempo em Londres”, explica à BBC News Mundo.
A rede de resistência desses trabalhadores é logicamente menor, ainda mais em uma cidade como Londres. Muitos apontam o preço da moradia como um dos motivos para não conseguirem aguentar mais tempo nessa situação.
“O preço do aluguel de uma casa é excessivamente alto em Londres, é surreal. E as condições dos apartamentos são lamentáveis”, desabafa Domínguez.
Para Sonia, o dinheiro ganho é rapidamente gasto em Londres. “Grande parte do seu salário vai para pagar aluguel, nem se fala se você tentar comprar uma casa. E se você tentar se mudar do centro em busca de algo mais barato, o transporte come a diferença”, lamenta.
Essa mesma queixa poderia ser feita em relação a muitas capitais europeias, mas que no caso de Londres é especialmente significativa.
A capital britânica é a cidade com o aluguel mais caro da Europa e o quarto mais caro do mundo, segundo dados da consultoria ECA International.
O custo médio de uma moradia de três quartos é equivalente a US$ 6.959 (quase R$ 38 mil) por mês, de acordo com dados de 2020. E um apartamento de um quarto pode movimentar entre US$ 1.700 e US$ 2.000.
Em suma, a queda da população economicamente ativa impulsionada por milhares de experiências semelhantes às narradas por migrantes neste artigo é o que “ajuda a explicar por que, apesar da força com que o PIB está sendo atingido, o desemprego ainda não disparou aos níveis que muitas organizações preveem”, analisa Portes.
E não para por aí: o relatório também aponta para a situação das universidades, já que muitas passaram a ministrar cursos à distância, fazendo com que estudantes estrangeiros também decidissem sair.
Preocupação em alguns setores econômicos
Antes da pandemia, “Londres ainda era atraente para os trabalhadores do Reino Unido e do exterior, apesar dos transtornos econômicos previstos pelo brexit (saída britânica da União Europeia)”, avalia Alec Smith, responsável pelo estudo habitacional da consultoria ECA.
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Mas a evolução do êxodo acendeu alguns alertas nos setores econômicos mais dependentes da imigração europeia no Reino Unido.
“Temos visto alguns problemas em setores que tradicionalmente contam com muitos trabalhadores da União Europeia. Temos membros que estão sofrendo para preencher vagas na produção de alimentos e transporte, sobretudo de veículos pesados”, afirmou Neil Carberry, diretor da Confederação de Contratação e Emprego ao jornal britânico The Telegraph.
A UK Hospitality, que representa o setor de hospitalidade, também notou essa tendência. Segundo seus dados, um quinto dos trabalhadores do setor vêm do exterior, percentual que sobe para 30% nos hotéis e que, em Londres, responde por três quartos da força de trabalho que atua na limpeza e cozinha. Muitos foram embora, destacaram em comunicado.
A maior preocupação está em setores como a agricultura, onde “99% da mão de obra agrícola sazonal vem da União Europeia”, de acordo com um relatório da Câmara dos Comuns.
“Por que nossos jovens e nossa força de trabalho evitam o trabalho duro, enquanto romenos, lituanos e búlgaros, etc., parecem encarar?”, perguntou o deputado conservador Derek Thomas em uma sessão parlamentar recente que abordava a situação desse setor.
É que o medo da escassez de mão de obra se agravou nos últimos dias.
“Sabemos que muitos dos nossos trabalhadores voltaram para casa, mas não sabemos quantos vão retornar”, disse Kate Nicholls, representante da associação de hoteleiros.
O retorno (ou ausência dele) é justamente o medo dos empresários britânicos, que em meio à pandemia e ao brexit, não têm mais a confiança de serem tão atraentes para os trabalhadores que vêm de fora de suas fronteiras.
Uma pesquisa recente da Make UK, organização que reúne a indústria manufatureira, revelou que um terço dos fabricantes britânicos acredita que a capacidade do país de atrair talentos internacionais diminuiu.
Eles vão voltar?
O fato é que, à medida que a pandemia avança, o Brexit também se tornou realidade. E com ele, as novas regras de imigração.
Os cidadãos da União Europeia que deixaram o Reino Unido no ano passado precisarão de visto de trabalho para voltar e trabalhar no país. Aqueles com status reconhecido poderão retornar para ocupar vagas, mas os novos imigrantes, não.
“Eu poderia voltar. Mas embora tenha medo da precariedade do trabalho no meu país, espero não precisar fazer isso”, diz Sonia, a médica espanhola.
“Os debates sobre imigração nos últimos tempos tampouco me ajudaram a me sentir mais ligada ao país”, acrescenta.
“Não sei, talvez (volte) no futuro”, afirma o tatuador Alberto Domínguez, que reconhece que o Brexit traz algumas incertezas.
“Vamos esperar o coronavírus passar.”
Angela também não está convencida: “Prefiro ficar no meu país agora, mas veremos quando a pandemia acabar”.
É muito cedo para saber se esse êxodo de migrantes é uma via de mão dupla, mas, já antes da pandemia, uma pesquisa da BBC mostrava que a procura de emprego no Reino Unido por europeus em portais de trabalho havia caído 12% no país e cerca de 15% em Londres em 2019.
E aquele ano entrou para o calendário como o de maior queda de migrantes europeus trabalhando no Reino Unido desde 1997, de acordo com dados do Escritório de Estatísticas Nacionais do país.
Uma incerteza de que a pandemia ampliou. Pelo menos, por enquanto.
Fonte: Jesús Moreno | BBC News Mundo
Sergio Montini é professor de inglês da plataforma O Inglês da Rainha. Formado em Análise e Desenvolvimento de Sistemas pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Sergio trabalhou em empresas de tecnologia em Londres, Reino Unido, e hoje dedica-se ao ensino do idioma inglês.
Sergio é brasileiro naturalizado britânico.