Estaria o sotaque de inglês ‘refinado’ ameaçado de extinção no Reino Unido?

O sotaque refinado da classe alta – que apreciadores da cultura britânica vão reconhecer de dramas televisivos como Downton Abbey – perdeu um pouco do que se pode chamar de pureza nas últimas décadas, já que mais pessoas falam um misto de inglês “operário” e “das elites”.

Pode parecer algo relacionado à velha obsessão britânica com classes sociais, mas o fato de a rainha não falar mais o que ficou conhecido como o Queen’s English (o inglês da rainha) oferece uma oportunidade de analisar as forças que moldam como falamos.

A ideia de um sotaque “apropriado” surgiu apenas recentemente na história da língua inglesa. Jonnie Robinson, linguista da British Library, conta, por exemplo, que o famoso dicionário de Samuel Johnson, publicado em 1755, não trazia a pronúncia das palavras porque havia a percepção de falta de consenso sobre a forma mais correta de articular palavras. “Se você analisa o século 18, verá que trabalhadores e ricos todos falavam com uma espécie de voz local”. O próprio Johnson tinha um sotaque da região de Lichfield.

Foi a crescente popularidade de escolas em regime de internato que começou a mudar maneira como as elites falavam. Robinson conta que estes estabelecimentos promoviam um sotaque que lembrava mais os sons do sudeste da Inglaterra, em que muitas escolas e universidades se baseavam.

Autoridade

Rapidamente, o sotaque se transformou em sinal de classe e poder, uma associação que ficou ainda exacerbada quando a BBC adotou um padrão oficial de pronúncia – a Received Pronunciation – para as suas transmissões, já em 1936. “Era a voz que todos no Reino Unido e no resto do país associou com autoridade”, explica o linguista.

Em meados do século 20, o sistema de classes já era mais fluido: o sotaque agora era uma das poucas maneiras de ressaltar que alguém tinha herdado sua fortuna em vez de construí-la. A escritora Nancy Mitford expressou isso ironicamente ao dizer que “apenas a linguagem distingue as classes mais altas, já que eles já não são mais limpos, ricos ou mais educados que o resto”.

Talvez fosse apenas uma questão de tempo para que a desigualdade linguística também diminuísse. Mais e mais pessoas de classe trabalhadora começaram a ocupar posições de poder, e isso fez com que características de sotaques mais regionais começassem a aparecer na Received Pronunciation. “Há mais gente agora que fala um inglês em que a pronúncia da BBC se mistura ao cockney“, conta Jonathan Harrington, da Universidade Ludwig Maximilian, em Munique.

E um sinal disso é o fato de que os príncipes William e Harry falam justamente desse jeito.

Já na época do Casamento Real de 2011, Kate Middleton, então noiva de William, falava com um sotaque mais polido e aristocrático que o segundo na fila do trono britânico. Algo que pode ter sido causado pela pressão psicológica de ser a primeira pessoa sem “sangue azul” em mais de 300 anos a se casar com um membro da família real.

Não é muita surpresa que pessoas mais jovens adotem alguns tons que escutam nas ruas como forma de reação contra sua criação. “Seria trejeitos que nos fariam parecem mais moderninhos e antenados, mas que abandonamos quando crescemos”, explica o linguista.

A surpresa aqui é que uma monarca de 89 anos seja influenciada. Os estudos de Harrington mostram que mesmo o sotaque da rainha ganhou tons mais “classe média” nas últimas décadas. Algumas palavras pronunciadas por Elizabeth 2ª têm o mesmo som saído dos lábios da cantora Adele.

Harrington não acredita que a rainha tenha passado por algum tipo de lição para “soar menos aristocrática”. Suas análises dos discursos de Natal feitos pela soberana sugerem mudanças graduais na pronúncia, de forma quase imperceptível, ao passo que se ela estivesse deliberadamente tentando “imitar” os súditos, as alterações seriam mais abruptas.

Para o acadêmico, a mudança pode ser explicada por alguns estudos de psicologia sobre a arte da conversação. Vários experimentos mostram que nossos sotaques “gravitam” levemente em direção ao de interlocutores, como forma de estabelecer uma conexão. Há até evidências de que isso nos ajuda a entender melhor o que os outros estão dizendo. E o mais importante: os efeitos permanecem mesmo depois das despedidas.

Harrington explica que, no começo de seu reinado, em 1952, Elizabeth não tinha muito contato com muitos súditos das ruas de forma frequente. Mas a mobilidade social que marcou os anos 60 e 70 fez com que pessoas de sotaques mais “plebeus” começassem a ocupar posições de poder.

“Pense, por exemplo, no caso dos primeiros-ministros. Nos anos 50, eles vinham da aristocracia, mas nas décadas seguintes o país teve líderes de outras origens – Harold Wilson, Edward Heath e Margareth Thatcher”.

Isso sem falar em empregados e funcionários reais. E mesmo os netos da soberana. Todos trouxeram vozes diferentes.

Harrington acredita que apresentadores de TV como David Attenborough também foram influenciados por essas mesmas forças – basta assistir aos seus primeiros documentários. “Essa sutil imitação espontânea é um dos principais motores da mudança do som (da pronúncia)”, diz ele.

O mais fascinante é que essa sutil imitação tinha sido observada, durante estudos, em pessoas comuns. Não em uma rainha. Apesar de todo seu poder e fortuna, Elizabeth 2ª ainda está fazendo os mesmos pequenos e inconscientes gestos de solidariedade que todos nós fazemos em conversas.

E isso significa que cada papo deixou uma marca em seu discurso. Em uma simples vogal, podemos encontrar traços de todas as pessoas que ela encontrou, em um sinal da mudanças sociais no Reino Unido.

Leia a versão original dessa reportagem (em inglês) no site BBC Future.

Inscreva-se
Notify of
guest

0 Comentários
Mais antigo
Mais novo Mais votado
Inline Feedbacks
View all comments
Posso ajudar?